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O longo caminho para a recuperação pós-covid-19

Moradora da zona leste de São Paulo, Maria passou mais de 40 dias internada para o tratamento contra a covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus, no hospital do distrito de Brasilândia. Ela teve alta no dia 4 de setembro.


A tosse constante acompanha dia e noite, enquanto os grandes cilindros de oxigênio, ainda essenciais após três semanas de alta, continuam um empecilho para caminhadas mais longas que da cama ao banheiro ou à cozinha da casa da filha. “Às vezes durante o banho esqueço de respirar como orientou a fisioterapeuta, e preciso sair às pressas para tomar oxigênio”, relata a cuidadora Maria Alzenir Lima, de 53 anos, que deixou a UTI há quase um mês.

Moradora da zona leste de São Paulo, Maria passou mais de 40 dias internada para o tratamento contra a covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus, no hospital do distrito de Brasilândia. Ela teve alta no dia 4 de setembro.

O marido, que deu entrada em outro hospital um dia depois, não suportou as complicações cardíacas e renais causadas pela infecção do vírus e morreu no dia 4 de agosto no hospital do M’Boi Mirim, na zona sul da capital paulista. “A ficha ainda não caiu, porque quando saí de casa para ir à Unidade Básica de Saúde (UBS) ele estava bem; e quando saí do hospital me dão a notícia que não vou mais vê-lo… A sensação é que quando voltar para casa ele vai estar lá me esperando”, conta.

Desde que recebeu alta do hospital, há quase um mês, Maria Alzenir não foi para a sua casa desde o fim de julho. Para ser acompanha constantemente, ela agora vive na casa da filha Bárbara Lima, que transformou a sala num quarto para a mãe. O espaço também é usado para fisioterapia. “Depois da morte do meu pai, ninguém acreditava que ela iria voltar”, afirma Bárbara, de 31 anos e que trabalha como manicure.

Na mesma semana em que o mundo atingia a marca de 1 milhão de mortes causadas pelo novo coronavírus, e com o Brasil acumulando mais de 140.000 mortes, Maria Alzenir passava por sua décima sessão de fisioterapia, buscando amenizar os efeitos da internação prolongada. Os músculos das pernas atrofiaram, tirando a firmeza no caminhar. “Quando cheguei, não conseguia nem pisar no chão que já formigava tudo, agora consigo dar uns passos; mas vacilando muito, não tenho segurança”.

As dificuldades enfrentadas por pacientes que sobreviveram à covid-19 são comuns, devido ao tempo prolongado de internação. “Pacientes que vão para a UTI levam em média, de três a quatro semanas para ter alta hospitalar”, afirma a infectologista Marli Sartori, do Hospital Santa Lúcia, em Brasília. Tanto tempo na unidade impacta todo o organismo, que demanda terapia após a alta para se recuperar totalmente.

Aflitos e sem a atenção de um fisioterapeuta pelo SUS, os parentes de Maria Alzenir passaram a pagar R$ 120 por semana para o tratamento da matriarca. Mais dinheiro deve ser investido nas próximas semanas para que ela consiga sair de casa com mais segurança. Ela ainda necessita consultar um pneumologista para avaliar a condição dos pulmões. Por enquanto, os familiares temem tirá-la de casa, mesmo de carro.

“Eu já era apavorada, agora, depois de perder meu pai e quase perder minha mãe, fiquei ainda mais; ela consegue ficar um tempo sem oxigênio, mas e se de repente der um problema na rua, como fica? Não tenho segurança para isso”, lamenta Bárbara.

Sequelas

A tosse constante não é sintoma de volta da doença, explica a fisioterapeuta contratada pela família, Evelyn Felisari, mas reflexo das duas semanas com o tubo do respirador mecânico. “A laringe tem receptores que ficam sensibilizados após esse tempo. É como se ainda tentasse expulsar o tubo que já não está lá.” Os pulmões também ficam rígidos. O diafragma, que se comporta como os demais músculos do corpo, atrofiado. “Trabalhamos para liberar o paciente em um mês, mas a evolução depende muito de pessoa para pessoa”, explica a profissional.

Maria ainda não consegue rir com naturalidade. “Até a gargalhada mudou”, reclama a filha, apontando a mudança na voz, rouca, e o riso que agora é contido para não provocar uma crise de tosse. Comer também é um problema, já que alimentos mais duros causam dor e incômodo.

De acordo com um estudo sul-coreano, nove em cada dez pacientes com novo coronavírus relataram ter experimentado efeitos colaterais como fadiga, perda do olfato ou paladar e distúrbios psicológicos depois de se recuperarem da doença. A fadiga foi o efeito colateral mais comum, registrado em 26,2% dos participantes da pesquisa comandada por Kwon Jun-wook, autoridade da Agência de Prevenção e Controle de Doenças da Coreia (KDCA).

Segundo reportagem da revista científica Nature, distúrbios neurológicos vêm se mostrando cada vez mais comuns em pacientes que têm ou que superaram a doença. Algumas pessoas hospitalizadas sentiam delírio. Já um estudo japonês apontou danos nos tecidos cerebrais. A lista de problemas agora inclui acidente vascular cerebral, hemorragia cerebral e perda de memória. Não é inédito que doenças graves causem esses efeitos, mas a escala da pandemia de covid-19 significa que milhares ou mesmo dezenas de milhares de pessoas podem estar sofrendo com esses sintomas, e algumas podem enfrentar problemas para toda a vida como resultado.

Maria Alzenir não lembra de nada de 22 de julho, quando começou a sentir os sintomas mais comuns da covid-19 –falta de ar, fadiga, tosse– ao fim de agosto, quando voltou a falar mais frequentemente com a família, ainda no hospital. “Tudo o que sei da minha ida à UBS, da transferência para o hospital, da impossibilidade de falar com meus familiares vêm por meio da minha filha”, relata.

Ainda hoje ela costuma esquecer fatos que ocorreram recentemente. “Ontem mesmo ela perguntou por que um parente demorava tanto a visitar, quando, na verdade, ele tinha vindo no dia anterior”, relata a filha Bárbara. Antes “dorminhoca”, Maria Alzenir agora também relata insônia.

Ao todo, mais de 300 estudos em todo o mundo detectaram sintomas neurológicos em pacientes com covid-19, incluindo a perda de olfato e paladar. Os mais graves incluem afasia (dificuldade em se expressar e compreender), derrames e convulsões. Os estudos apontam como o vírus, que foi inicialmente considerado uma doença respiratória, também causa estragos nos rins, fígado, coração e quase todos os sistemas corpo, levando à classificação da covid-19 como doença sistêmica.

Números estáveis, mas ainda preocupantes

Maria Alzenir, Bárbara e demais membros da família moram no bairro de Sapopemba, campeão em número de casos e, principalmente óbitos na capital paulista. Até o fim de julho, foram registradas 520 mortes entre moradores da região, 4% de todos os óbitos registrados em São Paulo. Eram pessoas como José Wellington de Sousa, o marido de Maria Alzenir.

Aposentado, 16 anos mais velho que a esposa, Sousa sugeriu que ela deixasse de trabalhar durante a pandemia, considerando que eles poderiam contar com sua aposentadoria de um salário mínimo. “Eu não quis parar, sempre trabalhei, não queria depender dele; mas para isso, pegava ônibus lotado todos os dias”, conta Maria. Ela também relata que chegou a dormir no chão para evitar o contágio do marido depois que sentiu os primeiros sintomas, “mas àquela altura ele provavelmente já tinha pego”, lamenta. Ela afirma que, se pudesse voltar no tempo, teria parado de trabalhar temporariamente.

Após mais de 100 semanas com a taxa móvel estável ou em alta, o estado de São Paulo tem apresentado queda no número de casos e mortes nas últimas semanas, mas os números elevados não sinalizam queda na curva de contágio. Com uma média semanal próxima das 300 mortes por dia em todo o estado, de acordo com o consórcio Dados Transparentes, os números de São Paulo se mantêm equivalentes aos de junho.

Enquanto a maioria dos países apresentou um pico agudo de contágio, seguido de uma queda por conta das medidas de isolamento social, o estado de São Paulo e o Brasil sofrem com uma relativa estabilidade num platô alto desde o começo de maio, segundo dados compilados pela página Our World in Data, no que pode ser considerado a maior curva de contágio do mundo, com uma duração de cinco meses até o final de setembro.

Para afeito de comparação, os EUA, que ainda registram a maior incidência de casos e mortes, tiveram um pico em meados de abril, quando 2.700 pessoas morreram em um único dia, seguido de uma forte queda. Já a Índia, que hoje é o foco da covid-19 no mundo, não parece ter chegado ao pico da curva.

No Brasil, mesmo com os números ainda num patamar alto, cenas de praias, bares e festas lotadas vêm se repetindo em todo o país, independentemente de classe social. Nora de Maria, Tamires Lima se preocupa com a falta de adesão ao isolamento. “Aqui nessa mesma rua muita gente foi infectada e continua acontecendo, enquanto as festas estão acontecendo normalmente”, relata. Ela teme uma nova infecção, já que as pesquisas ainda não garantem a imunidade permanente. Já Maria Alzenir apenas espera ter forças para aproveitar algo deixado de lado há mais de dois meses: “Queria só tomar uma cerveja gelada”, brinca.